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Soco no Estômago

Foto: Elisa Mendes

Crítica da peça Mata Teu Pai, Cia OmondÉ

Uma Medeia está em cena. Não é a de Eurípedes, é a de Grace Passô. Enquanto entramos no Galpão Gamboa, procuramos nossos lugares, desligamos nossos celulares e ainda rimos e conversamos aguardando o terceiro sinal, uma Medeia já está em cena. Sentada no fundo no palco, pés descalços, observando a todos que entram, Debora Lamm é a atriz que dá corpo à personagem de Mata Teu Pai. A peça expõe através da vida de Medeia (mulher estrangeira, mãe, esposa, vizinha), questões pulsantes na sociedade dos tempos atuais: nossos valores, nossos preconceitos, nossas contradições, os retrocessos, violências, intolerâncias e, principalmente, a questão da mulher.


A encenação coloca no palco um coro de 14 senhoras moradoras da região da Gamboa, todas com mais de 65 anos. São mulheres periféricas e suas vivências. São elas que preenchem lacunas, ou melhor, que criam mais lacunas de pensamento na história que Medeia nos conta.


A primeira cena é de tirar o fôlego, literalmente, da atriz e da plateia. Há um rebatimento, uma projeção entre atriz e público quando Debora Lamm levanta do fundo do palco e vem à boca de cena esgarçar um riso desesperador que se transporta para choro na mesma sutileza e velocidade que volta a ser riso e se estende por muitos minutos até o último suspiro. O espectador passa, de alguma forma, pela mesma experiência que o corpo da atriz, como um espelhamento. Ela dá vida à falta de ar que a gente sente em meio às urgências do mundo. É um fragmento deslocado da dramaturgia que é colocado em questão num ápice, em que se pressupõe de imediato a agonia da personagem. Provoca uma estranheza incômoda que nos tira do lugar banal que estávamos cinco minutos atrás para nos colocar num lugar que ainda não sabemos qual é. Além de inquietude, temos a certeza de que não sairemos dali os mesmos, não depois daquela risada. Esse é o primeiro dos três "socos no estômago" que Mata Teu Pai nos dá.


Em termos dramatúrgicos, é na relação de Medeia com as vizinhas também imigrantes que Grace Passô, a autora, escancara a hipocrisia geral e a falta de empatia que corrói as relações humanas. Medeia está rodeada de pessoas e ainda assim está sozinha nesta terra que não é a sua (tanto que diz sentir a necessidade de chamar alguém de "mãe", mas o coro de mulheres recusa o seu pedido). Em um dado momento, ela sofre um estupro e a única a defendê-la é uma cadela. Nem as vizinhas ou filhas vão ao seu encontro. Após relatar inúmeras desgraças, o único ser que se compadece com a personagem é o animal. Detalhe para cadela, no feminino.


A relação com a família é um paradoxo: é ao mesmo tempo a mais tênue e a que mais se dilata. Nela nos é revelado o título da peça. Medeia tem filhas que ama e uma relação conturbada com o marido que a abandonou. Mas é desse pai ausente que as crianças sentem saudade, que as pessoas recebem bem quando volta para casa, que pergunta se a mãe está fazendo o seu dever e cuidando de tudo direitinho. Com uma narrativa fragmentada, vemos que apesar de imposta à uma submissão patriarcal, Medeia é muito mais amor do que dor. Ela diz "Se vocês tivessem a justiça dentro do coração, vocês matariam" e, com isso, nos faz acreditar que não é justa a dor que ela recebe diante de tanto amor que dá. Pela primeira vez repenso a Medeia de Eurípedes não mais como vilã, também não como vítima, mas como alguém que sente.


A Medeia de Debora Lamm picha no fundo do palco a frase "Sou do tamanho do amor" e me surpreende ao pegar uma arma e entregá-la a mim. Sou agora filha de Medeia e minha mãe quer que eu mate meu pai. Jamais faria isso, mas ela grita a frase-título da peça com tanta potência, MATA TEU PAI, que cogito a possibilidade. Em alguns momentos no decorrer da peça procurei o olhar da atriz com o desejo que ele encontrasse o meu, mas o dela estava sempre alto, para além de todos nós. Acredito que por uma proposição da direção. Medeia se diz uma pessoa que sabe olhar nos olhos de alguém, mas seu olhar atravessa sempre o horizonte, poucas são as vezes que ele se cruza com outros olhares. Agora que consigo essa conexão, ela me perfura. O olho no olho é tão intenso que dói e quase me arrependo de tê-lo buscado. É por esse olhar e pelas palavras áridas com que ela me ataca, "de mulher para mulher", que recebo o segundo e mais sufocante "soco no estômago".


Inez Viana, diretora da peça, desenha com o coro de mulheres ações que complementam a narrativa de Mata Teu Pai por meio de contrastes. Essas mulheres são as vizinhas, filhas e até a própria Medeia, uma espécie de inconsciente coletivo da personagem. Quando Medeia narra que beijou a vizinha estrangeira, por exemplo, quem se beija no palco são duas das senhoras. A disponibilidade cênica de mulheres da terceira idade, que poderiam não estar ali e estão, aparentemente, por um desejo próprio, é emocionante. Uma delas deita no colo de Medeia e mama em seu seio antes de cair morta. A inversão de papéis da atriz mais velha sendo filha da mais nova, torna mais tangível a nossa compreensão à inversão que a peça estabelece da mãe, essa figura que dá a luz, para aquela que também tira, ou do leite que alimenta para o leite que mata.


O terceiro e último "soco no estômago" vem recheado de questionamentos sobre o machismo e o patriarcado. Não que esse ponto não tenha sido interpelado por toda a extensão da peça, mas é quando Medeia, tradicionalmente como a de Eurípedes, mata as filhas, que as questões de opressão da mulher na sociedade ganham notoriedade. Ela mata muito mais que por uma vingança que considera legítima, ela mata por sofrimento.


Medeia, centralizada no palco, o coro ao seu redor, todas olhando para frente. Já de arma na mão, a protagonista fala com as senhoras um discurso ríspido que entendemos ser o último. Nesse momento, ela parece falar de igual para igual. Não julgamos Medeia pelo que ela está prestes a fazer, por mais grotesca ou errada que ela possa se mostrar. Antes de atirar, como que em um último gesto para ser ouvida, Medeia puxa o nosso tapete ao dizer, em meio à explosão de desembargos, algo como "Você não devia estar aqui essa hora". Ali entendemos que todo descarrego, todo apelo para ganhar voz, lugar, espaço está para além das relações familiares e que, na verdade, quem vai morrer agora somos nós. A frase materialmente falada por uma mulher para outras 14 mulheres, diz respeito a um âmbito social muito maior que simplesmente de uma mãe às filhas, ela denuncia a opressão do feminino sob o masculino em toda a sociedade, seja a do século XXI ou a do século V a.C., quando Eurípedes já “ressaltava as agitações da alma feminina”.


A identidade da autora é destaque. Não somente em Mata Teu Pai, como em Por Elise (2005) ou Vaga Carne (2016), Grace Passô escreve de uma maneira própria, revelando a mulher como corpo político, estético, visceral e também bastante poético, atravessado de sentimentos, afinal gente sente tudo, como dito em Por Elise.


Quem assina o cenário é Mina Quental. Lixos elétricos e eletrônicos pintados de prateado explodem do chão e vão, como uma erupção, até o teto. É possível relacionar com uma ideia de dilatação do espaço, mas não posso deixar de evidenciar que o cenário é um pormenor perante a autossuficiência da montagem da diretora Inez Viana. Até o vazio seria bastante para a realização da peça.


Ouso relacionar Mata Teu Pai com outra peça: Medeia Material, de Heiner Müller, montada pelo diretor Anatoli Vassilliev - que assisti em vídeo. Ambas as obras trabalham a linguagem como impacto estético e tanto Debora quanto Valérie Dréville (atriz de Medeia Material) colocam em jogo a violência da fala escrita com vigor em suas vozes. Atrizes “de intensidade, não de intenção”, citando Novarina, elas fazem jus à força do texto. É quase impossível sair impune. O espectador é testemunha. Medeia metralha os filhos e também a sociedade. Ela escancara o problema que está aí e que precisa ser falado. Ela quer voz. Assim como todas as mulheres.

 MANIFESTo CULTURAL        ''SEMENTES'' 

 

Nós nos reunimos para pensar o pensamento crítico da atualidade. Um pensamento crítico que pretende aproximar os fazeres artísticos em pauta da pesquisa universitária.

Investigamos o diálogo em ebulição entre as formas mais tradicionais - em desuso ou não - as questões contemporâneas e as nossas individualidades enquanto alunos de Artes Cênicas da PUC-Rio.

 

A semente que plantamos se distancia do juízo de valor e busca conectar as experiências estéticas em exposição com os nossos próprios experimentos.  

  Dicas da semana: 

 

02/06/17: Obsessões (Laborátorio de Artes Cênicas PUC-Rio) 

03/06/17: Anánkê (Laboratório de Artes Cênicas PUC-Rio) 

04/06/17: Boca de miséria (Vila os diretórios PUC-Rio)

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