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Pobres soberbos do mundo, uni-vos!



Crítica da peça Cidade Correria - Junho de 2017

Direção Adriana Schneider e Lucas Oradovschi


Igor da Silva, morador da Vila Cruzeiro, meu vizinho e apesar disso não o conhecia; artista e apesar disso não o conhecia. Igor abre o espetáculo Cidade Correria introduzindo a si e ao Coletivo Bonobando no Teatro Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Cidade Correria não se limita a falar sobre a cidade ou sobre a favela, mas, o espetáculo se atreve a colocar os cidadãos, os favelados em cena. O que acontece? Uma mudança de perspectiva. Uma nova cena e uma estética são inauguradas ali.


As abordagens do espetáculo não são novas ou desconhecidas. Ouvimos, cena a cena, os transtornos da cidade (uma cidade inventada ou a nossa?) serem questionados, problematizados e reinventados. Mas, o que há de tão inaugural em Cidade Correria? Lukács tem uma passagem em algum dos textos que li durante a graduação dizendo que “de cada contexto social emerge uma forma”. O espetáculo ousa levar para a cena não um resultado mas sim células, experiências que conferem ao trabalho um ineditismo contemporâneo a partir da escolha em inserir novos atores de um circuito não óbvio que escapa do eixo Centro - Zona Sul e cria-se uma dramaturgia que foge do eixo Europa - América do Norte.


De todas as maneiras que já se tentou abordar as questões periféricas de nossa metrópole, Cidade Correria caminha ao lado das iniciativas que não tentam “levar arte aos esquecidos”, “dar voz à população carente”, não. Europeizar as questões suburbanas para que elas sejam inteligíveis ficou para trás. Trata-se aqui de perceber as potencialidades próprias daqueles que sempre tiveram voz, mas ninguém nunca esteve realmente interessado em escutá-las.


“O espetáculo não é uma história, é uma invasão, um transbordamento de nossas urgências cotidianas, nossas contradições, alegrias, delírios, feridas e potências” - diz o programa do espetáculo. O que vemos não é uma ideia poética de invasão. Ela é literal, concreta. Não só o Coletivo Bonobando invadiu um Teatro do outro lado da cidade - o lado surdo - mas os atores invadem a cena pela entrada de público com instrumentos, com um carnaval de cores, de gentes, de batuques e sambas. E ficam ali no espaço destinado exclusivamente à plateia quase que zombando da nossa quietude formal. Deste modo, a peça não se limita a uma amostragem mas tenta se aliar aos trabalhos que problematizam as convenções naturalizadas em tantos anos de palco italiano e teatro dramático onde a plateia assiste. Aqui o espectador participa.


Daniela Joyce, Hugo Bernardo, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa e Vanessa Rocha juntam-se a Igor da Silva no palco numa composição caótica. Os figurinos vão de um mergulhador a uma menina com pijama. Não há a intenção de interpretar uma persona, de construir um personagem ou de contar uma história. A dramaturgia é fragmentada e parece composta por variados exercícios cênicos que, somados aos elementos já descritos, conferem à peça um caráter lúdico, irônico, dinâmico, inventivo, emocionante e inaugural.


Entretanto, em alguns momentos a teatralidade fica comprometida com as falhas técnicas na direção de atuação. Mesmo aqueles corpos cheios de intensidades precisam de base e articulação no falar sustentando a estética proposta. O espetáculo joga constantemente com as tensões que fundem pessoa/ator, jogo/teatro. Sua abertura a atravessamentos e proximidade com as realidades em questão o torna uma armadilha para o fantasma do corpo cotidiano, ou seja, um corpo não engajado e desprovido de tensões. Este corpo se faz presente principalmente nas transições e nas cenas coletivas onde alguns atores acabam se abstendo de uma responsabilidade pelo jogo. Dessa maneira, as potencialidades do espetáculo acabam se enfraquecendo entendendo que as pessoas/atores não podem se apoiar no código da personagem, por exemplo, que impõe como premissa uma desnaturalização do “gestus”.


Muitos são os momentos de interação com a plateia que parecem ter por objetivo desconstruir ou ao menos diminuir a distância entre público e palco, distância essa que em muitos espetáculos sustenta uma hierarquia. Sentada na segunda fileira eu acabo fazendo parte do espetáculo. Até chegar ao ponto de subir no palco para jogar algo semelhante a uma brincadeira infantil chamada “morto-vivo”, aqui adaptada para “ruas-vielas”. Ao invés de abaixar e levantar, doze espectadores são convidados a virar de um lado para o outro como um cardume obediente que constrói o espaço por onde os atores perpassam. Quando nos damos conta, aquela brincadeira despretensiosa reconstrói a geografia confusa de uma favela. Estamos em meio a uma caçada, mais uma brincadeira infantil como “polícia e ladrão”. O jogo é interrompido com a entrada de uma mini réplica de caveirão, apelido do carro blindado de guerra da Polícia Militar do Rio. O caos sonoro dá lugar a música “Chumbo Quente” do Mc Mazinho. Naquele momento é inevitável lembrar de Eduardo, menino de 10 anos morto com um tiro na cabeça no Complexo do Alemão em 2015 enquanto brincava na porta de casa. O caveirão subiu o palco, é hora de voltar para a poltrona.


“Mataram meus filhos! ” grita uma das atrizes em mais uma cena desconcertante. Sozinha no palco, ela brinca de boneca, tira gargalhadas da plateia ao brigar com seus filhos imaginários, obriga-os a tomar banho e dormir. A atriz diverte-se com o lúdico, ganha o público até que se acredite no jogo proposto por ela. Sutilmente, a atriz começa a narrar o início de um confronto policial até que seus filhos são alvejados por balas perdidas. Ainda era possível ouvir o eco de algumas gargalhadas ao fundo quando ela solta aquele grito seco, perturbador. Um berro que remove o véu da invisibilidade com que a sociedade trata os homicídios diários nas periferias. Uma cena que debocha da forma débil como as pessoas são vistas pelo poder público.


Cidade Correria tem momentos de plena teatralidade e jogo carregados de reflexões e criticidade. Mas não uma criticidade vazia, distante, intelectual - no pior sentido da palavra. A crítica é feita por quem vive diariamente a realidade das periferias do Rio, por quem está verdadeiramente inserido nesse contexto explorando as suas potências de dentro para fora, por quem não tem receio de rir de si mesmo e, principalmente, por quem está trabalhando para a construção de um futuro prático e imagético diferente para si e para os seus. “Você trabalha aonde neguinho? - Eu sou ator. Eu trabalho no Teatro Ipanema. - Agora quer dizer que preto faz teatro? Em Ipanema? ”


*Natália Balbino, 21 anos, estudante de artes cênicas da PUC-Rio cursando o sexto período. Mulher, negra e periférica.


 MANIFESTo CULTURAL        ''SEMENTES'' 

 

Nós nos reunimos para pensar o pensamento crítico da atualidade. Um pensamento crítico que pretende aproximar os fazeres artísticos em pauta da pesquisa universitária.

Investigamos o diálogo em ebulição entre as formas mais tradicionais - em desuso ou não - as questões contemporâneas e as nossas individualidades enquanto alunos de Artes Cênicas da PUC-Rio.

 

A semente que plantamos se distancia do juízo de valor e busca conectar as experiências estéticas em exposição com os nossos próprios experimentos.  

  Dicas da semana: 

 

02/06/17: Obsessões (Laborátorio de Artes Cênicas PUC-Rio) 

03/06/17: Anánkê (Laboratório de Artes Cênicas PUC-Rio) 

04/06/17: Boca de miséria (Vila os diretórios PUC-Rio)

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