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Por um mundo saturado de palavras


Crítica da peça Boca de Miséria, direção Ana Kfouri, montagem realizada pelos alunos do Curso de Artes Cênicas da PUC-Rio

Junho de 2017

A investida desse texto crítico subscreve um lugar desejante já de saída: a aproximação com o universo de uma escritora como Hilda Hilst. Da sua poesia, me aproximo como ela de Bataille, pela liberdade em fracassar. A obra de Hilda Hilst é de uma transgressão absurda para quem viveu uma geração de recalques e opressões de participação falada. Não se podia dizer quase nada em casa. A escola era diferente. Na contramão do que sabemos mais tradicionalmente no que diz respeito a educação e escolas, foi mesmo aí no ambiente escolar que a vida era mais livre, mais descolada e afeita ao trabalho de arte, à aproximação com a literatura, com autoras e autores, e com artistas mulheres e homens. No entanto, a fusão entre estes dois ambientes, o da escola e o da família – digo presencialmente mesmo -, só era possível nas datas comemorativas, festas de mães e pais, as famigeradas feiras de ciência e de folclore (sic), e mesmo assim nestas ocasiões a palavra tomava uma forma lapidada. Lá não se dizia tudo, não se abria todo o jogo do mundo.

Esta é a perspectiva que a peça Boca de miséria, montagem dirigida por Ana Kfouri com os estudantes do curso de Artes Cênicas da PUC-Rio, apresenta, ou seja, um lugar em que se pode mundificar – gerar mundo – por meio de palavras encarnadas. A denúncia-mundo aparece nas primeiras falas dos atores: “Tudo cabe nesse mundo de Deus”. Mas um mundo que se olha na radiografia. Neste mundificar, a dramaturgia possibilitou o agenciamento entre os jovens atores como corpos-vozes de Hilda Hilst em Fluxo; A obscena Senhora D; Tu não te moves de ti (Tadeu, Matamoros e Axerold); O Unicórnio; Kadosh; O caderno rosa de Lori Lamby; Contos d'escárnio, Textos grotescos; Cascos e carícias; Bufólicas; [da coletânea de poemas] Do amor; Júbilo, memória, noviciado da paixão e “Um diálogo com Hilda Hilst” em Fico besta quando me entendem. Se Hilda Hilst esteve em sua obra, como sabemos, voltada para a abertura de uma rara lucidez que o teor obsceno da vida emprega em nossos corpos-desejo, Boca de miséria, investe na saturação da palavra como afirmação da vida.

A dramaturgia-fragmentos operada na montagem se alia a estrutura da exposição da peça na Vila dos Diretórios da PUC-Rio, não sem uma alusão ao ambiente imaginário das discussões encaloradas entre estudantes, onde a palavra é multiplicidade e convocação. As palavras utilizadas por Hilda Hilst não são herméticas, não se dão à nenhuma espécie de interpretação, pois são palavras do desejo e isso encontra uma certa traduzibilidade na ideia mesmo de uma Vila dos Diretórios. O lugar é aquela sede das festas, da xerox mais barata sem copiadora colorida, do descanso, do estudo entre as aulas e que reúne os diretórios dos diferentes cursos e tribos da universidade.

A Vila dos Diretórios, no que diz respeito a uma invocação sensorial e imagética, ultrapassa um só corpo e sugere que pensamos melhor quando pensamos coletivamente. Ou se quisermos, existem coisas que só podemos pensar no coletivo, mas no que este tem como tensão máxima que é o dissenso. Indo adiante nesta hipótese que, a meu ver é possível justamente por se tratar de uma montagem de muitos corpos - uma montagem de artistas-pesquisadores na universidade -, trata-se ainda de propor que a palavra mostra sua força enquanto se mantém como medialidade, ou seja, como elemento que se mostra a si mesmo em franca organização e desorganização de significados sem a sua redução em sentidos precisos e afirmações objetivas. Mesmo em suas palavras-inventadas, o fato de que se trata de uma montagem de artistas-pesquisadores na universidade e em seu nicho de maior diversidade, o efeito para o espectador é de uma apropriação devida. Isso justamente pela juventude do corpo (não uma juventude puramente material e literal, mas de invenção) que produz os modos de pensar enquanto fala.

Mas como nos diz o título da peça, trata-se de uma palavra-miséria e nos perguntamos como se dá isso na encenação. Afirmar a palavra poética como sintoma daquilo que é o vivido no sub-reptício do âmbito social-familiar, como nos enxertos de Hilda Hilst, em um espaço do campus que é o da multiplicidade - incluindo o fato que eventos se misturam ali - é propor a intensificação da linguagem também como força comunitária de transformação, mas uma transformação-mistura pelos interstícios das instituições.

Em Boca de miséria o espaço se torna também convite ao cortejo-celebração da alegria do estar junto. Neste sentido, a proximidade entre os espectadores em cada casa-estação é um modo de insistir no par com as palavras em profusão de Hilda Hilst na boca dos atores, ou seja, se o fluxo verbal preenche o espaço com a saturação da linguagem, os espectadores-fruidores preenchem o espaço com seus corpos-calores. Então, a palavra é fervente.

A trupe dos artistas-pesquisadores se mostra irreversível na medida em que se afia como conjunto e, ao mesmo tempo como singularidades em dissenso. A respeito da atuação, a direção procura pela valorização da palavra na boca dos atores, sem deixar de transparecer um movimento alegórico no par corpo e voz. Lembramos que o sentido de alegoria tem a ver com o que nos mostra Baudelaire: um “gênero tão espiritual, que os pintores desajeitados nos acostumaram a desprezar, mas que é uma das formas mais primitivas e naturais da poesia, reconquista seu legítimo domínio na inteligência iluminada pela embriaguez” (BAUDELAIRE, 1982, p. 27).

Daqui, pelo menos duas implicações podemos pensar em relação ao trabalho dos atores. Uma delas diz respeito a tensão que se estabelece entre o início e o final da peça. A função tem início com o conjunto de atores no espaço externo da Vila dos Diretórios falando todos ao mesmo tempo e diretamente para o público. Estamos na esfera de uma percepção que oscila entre a palavra, o canto e o movimento alicerçada ainda pela multiplicidade de vozes. Se encontramos aqui uma alusão a embriaguez, tal estado ainda aparece ao final com os atores em cortejo e a falência dos corpos caídos no chão. O que a encenação propõe é que a palavra-miséria não vem à tona sem algum excesso, sem algum torpor. Em nosso mundo tão construído pelos discursos, apostar numa palavra que se vale da embriaguez como possibilidade para se dizer o não dito, refaz o espiritual que Baudelaire assume na alegoria moderna.

A segunda implicação da alegoria aparece, neste contexto em que se pensa atuação e encenação, como uma nova alteração fomentada pela poesia no mundo. Na atuação, a poética de Hilda Hilst é transpassada no corpo que se expressa pela fragmentação entre a palavra, sua matéria significante, e seu significado. Isso porque o corpo que atua não se alinha ao dito, não sublinha intenções já contidas nas palavras. Se por um lado, o efeito que resulta da atuação mostra uma certa crueza lúcida (pelo teor obsceno dos ditos: abusos, desejos, delírios), por outro lado a dissonância corpo/intencionalidade abre o abismo da miséria, justamente pela impossibilidade de encontrar algum descanso entre o que é dito e o que é expresso. Esta disjunção entre corpo e palavra resulta, do modo como vejo, em um modo de dizer que toma o corpo de assalto sem nenhum pudor. Assim, a reflexão se engaja na lucidez da miséria que as relações abusivas fazem aparecer quando não se tem recursos para compreender o desejo.

*Dinah de Oliveira é professora, pesquisadora e coordenadora no curso de Bacharelado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é também professora no curso de Bacharelado em Artes Cênicas da PUC-Rio. Doutora em Artes Visuais pela UFRJ, Teórica do Teatro e das Artes Visuais, Mestra em Artes Cênicas e Bacharel em Teoria do Teatro – UNIRIO, interlocutora artística do Instituto do Ator e Terapeuta Artística da Saúde Mental no CAPSad Mané Garrincha. Atriz formada pela CAL, participou ao longo de 15 anos em mais de 10 realizações cênicas como atriz e diretora na Companhia Studio Stanislavski, dirigida por Celina Sodré. Como artista Visual dedica-se aos estudos da metodologia de artista, da imagem, da Arte da Performance, da produção em trabalhos de Videoarte, Arte Postal e Livros de Artista.

Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/3879548191098503

 MANIFESTo CULTURAL        ''SEMENTES'' 

 

Nós nos reunimos para pensar o pensamento crítico da atualidade. Um pensamento crítico que pretende aproximar os fazeres artísticos em pauta da pesquisa universitária.

Investigamos o diálogo em ebulição entre as formas mais tradicionais - em desuso ou não - as questões contemporâneas e as nossas individualidades enquanto alunos de Artes Cênicas da PUC-Rio.

 

A semente que plantamos se distancia do juízo de valor e busca conectar as experiências estéticas em exposição com os nossos próprios experimentos.  

  Dicas da semana: 

 

02/06/17: Obsessões (Laborátorio de Artes Cênicas PUC-Rio) 

03/06/17: Anánkê (Laboratório de Artes Cênicas PUC-Rio) 

04/06/17: Boca de miséria (Vila os diretórios PUC-Rio)

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