Um mirante compartilhado
Foto: Ana Paula Rolon
NAÇÚ - Mostra BOSQUE_puc cena experimental
Abril de 2017
Uma despretensiosa leitura de um texto escrito por um universitário. Um colega. O local, um velho conhecido: o Decanato do CTC. Uma sala chata como qualquer outra sala de uma universidade. Não, houve um engano. A leitura na verdade seria feita na varanda desta sala, no décimo segundo andar do Edifício Leme. Preciso recomeçar a descrição. Um mirante. Significado de mirante no dicionário: “local elevado de onde se descortina um panorama.” Exato. Agora sim posso prosseguir.
O cenário ao fundo dos dois atores-leitores negros, um deles o próprio autor Kauê Itabacema, era um céu azul infinito escondido atrás do Cristo Redentor e de todas aquelas montanhas que rodeiam a Lagoa Rodrigo de Freitas, também perfeitamente visível. Atores-leitores negros, é ainda preciso adjetivá-los sim.
A leitura tem início e a voz de Thiago Catarino transforma quase tudo em cântico. Os dois descrevem a Zona Sul vista também do alto de um prédio, não a rica mas a pobre. A Zona Sul do estado de São Paulo, mais precisamente o ABC paulista. Uma descrição histórica que se contrapõe a todo momento ao que vemos de concreto ao fundo. Toda aquela pobreza confusa parece mentira. O texto em prosa torna-se a armadilha constante de uma leitura fria, entretanto, a pontuação quebrada e o jogo com as palavras construídos pelo autor não permitem que os dois caiam nela.
Seguem as primeiras páginas e eu, uma espectadora apressada, acredito já ter entendido o mote: um texto autobiográfico. Kauê, um paulistano desmascarado pelo sotaque a cada palavra, escreve sobre sua história e nos traz um paradigma crítico de todo aquele catolicismo intrometido, a procura dos índios ausentes até nas fotos mais antigas e afirmando uma identidade. A suspeita ganha mais corpo quando sem nenhuma transição óbvia esse paulistano vem parar “Na Sul” do Rio de Janeiro.
A velocidade com que a personagem passa do ABC para a capital paulista, de São Paulo para a Zona Sul do Rio e da Sul para a Zona Norte, faz lembrar a correria da Avenida Paulista ou da Avenida Brasil, também mencionadas ao longo da leitura. A oposição Sul e Norte marca criticamente toda a leitura assim como racha visivelmente a cidade do Rio e o estado de São Paulo, mesmo para quem não os conhece bem. O medo de morrer expresso pela personagem
ao atravessar constantemente estas fronteiras me atinge e certamente atinge a todos que escutam a leitura. Este medo é [não] naturalmente comum.
De forma súbita, aquela prosa é brutalmente interrompida por um diálogo. O texto se transforma a olho nu. Uma transgressão ousada, potente, que o retira de uma zona confortavelmente estabelecida. A transição de uma autobiografia crítica para um drama complexo transforma até a postura dos espectadores. A transfiguração de Naçu que permanecera sutil e quase imperceptível até ali, de repente transborda em toda a sua transexualidade.
Toda a pequenez do autor que até então, sem ignorar a sua personalidade, seguia os passos de suas referências e de seus precursores é substituída pela potência de toda aquela transmutação textual. A forma aqui é verdadeiramente o conteúdo. A autenticidade da obra emerge no momento em que a autobiografia não está contida na obviedade, mas sim a cada fragmento de palavra explorada [escrita, narrada, cantada, proseada, falada…].
*Natália Balbino, 21 anos, estudante de artes cênicas da PUC-Rio cursando o sexto período. Mulher, negra e periférica.