Fala do corpo, movimento da palavra
Foto: Carlos Peder
Crítica da peça Obsessões, textos de Nelson Rodrigues, direção de Ana Kouri
Junho 2017
O trabalho trágico e potente se dá em um território imersivo e movediço. O público entra no espaço cênico sendo recebido pelas prostitutas de Nelson, que assim como os demais atores, vão posicionando o público em seus assentos. Os lugares de onde o público vê são diversos. Música alta, corpos vazados se relacionando com o espaço, olhares de todos os lados: assim se inicia a experiência rodriguiana de Ana Kfouri na PUC-Rio com os alunos de artes cênicas.
A montagem traz diversas peças de Nelson que possuem entre si uma fina ligação que vai levando o público a múltiplos atravessamentos. Personagens obcecados, cada um pela sua razão ou melhor dizendo, não razão. O texto trágico e não psicologizado de Nelson, imerso no lugar da não representação, impacta o público que reage atentamente às cenas que disparam e provocam o deslocamento do olhar, mas também do corpo de quem vê. O início do espetáculo traz Geni e Herculano, cujo filho fala um pouco depois desta primeira cena, com a mesma Geni mas vivida por outra atriz. Não importa quem diz, mas o que se diz. O espetáculo traz a palavra como campo de força, lugar potente de um corpo não como instrumento de expressão ou de mensagem, mas de pulsão trágica e selvagem. A organização dramatúrgica do espetáculo mostra diversas cenas, deslocadas de seus contextos, e as apresenta de uma maneira não linear, sequencial, que inaugura uma nova possibilidade de leitura das obras de Nelson. É um acontecimento artístico de força e não de intenção.
O espetáculo ainda traz textos como o de Senhora dos afogados, A falecida, Sete gatinhos, Boca de ouro entre outros que vão fazendo o público se lançar nessa experiência de encarar a linguagem que o Nelson desenvolveu como um gole a seco. É uma obra política, forte, difícil e os aplausos no final não são uma mera formalidade. Todos os atores, vivos em cena, falam com o corpo e movimentam-se com a palavra.
Os textos foram escolhidos pelos próprios alunos, o que significa que o que eles fazem em cena não é meramente a escolha de alguém mas é uma escolha por afetação. Foram afetados por aquela palavra e por isso trouxeram a tona. Coragem e força são as características primordiais para pensarmos este espetáculo de maneira não superficial e crítica. São esses conceitos que sustentam a dramaturgia, fixando e deslocando o olhar do público a cada cena durante quase uma hora de duração.
Está em cartaz na universidade um espetáculo onde nitidamente fazer é pensar e pensar é fazer. Ambiente de resistência, debate e construção de pensamento. Espaço de vida, transgressão e de grito por liberdade. Obsessões é um espetáculo para aqueles que gostam de enfrentar. Enfrentar a vida, as decepções, o grotesco, o corpo, a tragédia.